De diferenças biológicas a desigualdades de gênero na longevidade: uma análise internacional das expectativas de vida por sexo
A expectativa de vida é um dos indicadores mais usados para avaliar a saúde de populações. Em praticamente todos os países do mundo, as mulheres vivem mais do que os homens em média, em quase todas as idades.[2][3] No entanto, a diferença observada entre sexos não é apenas um reflexo de fatores biológicos: ela também expressa desigualdades evitáveis associadas a gênero, condições sociais, acesso a serviços de saúde e exposição diferenciada a riscos. Um artigo recente de Angela Y. Chang e colaboradores propõe justamente separar o que é diferença biológica do que é desigualdade injusta, introduzindo um método de “benchmarking” internacional para medir as desigualdades em expectativa de vida entre homens e mulheres.
Diferença entre sexo e desigualdade de gênero na expectativa de vida
A literatura demográfica mostra que, ao longo do século XX, consolidou-se em quase todo o mundo uma vantagem feminina na esperança de vida, que se ampliou à medida que melhoraram as condições de vida, reduziram-se as doenças infecciosas e se avançou na transição epidemiológica.[1][2] Em muitos países ocidentais, as mulheres vivem, em média, de 4 a 7 anos a mais que os homens.[1] Estudos em outras espécies de mamíferos também apontam maior longevidade das fêmeas, sugerindo um componente biológico, incluindo papel dos cromossomos sexuais e de estratégias reprodutivas.[3]
No entanto, longevidade maior não significa necessariamente melhor saúde ou ausência de desigualdade. Pesquisas no Brasil, por exemplo, indicam que as mulheres vivem mais, mas muitas vezes com mais anos de vida em condições de saúde precária, enquanto os homens morrem mais cedo por causas evitáveis, como doenças cardiovasculares e causas externas (violência, acidentes).[2][4][6] Fala‑se, assim, em “paradoxo de gênero”: mulheres com maior expectativa de vida, mas também maior carga de morbidade; homens com maior mortalidade precoce, especialmente por causas evitáveis.[2][4]
O trabalho de Chang et al. parte dessa tensão: a pergunta “quem tem melhor saúde, homens ou mulheres?” depende não só do indicador, mas também de como se mede a desigualdade. Por isso, os autores tratam desigualdade de sexo em saúde como as diferenças evitáveis entre mulheres e homens em um dado desfecho de saúde, aqui a expectativa de vida em várias idades.
Metodologia: da razão simples de sexos ao “ajuste” por fronteira de desempenho
O estudo propõe um novo indicador, a razão ajustada de sexo, para distinguir o que seria uma diferença potencialmente biológica do que pode ser considerado desigualdade evitável. O procedimento, em termos simplificados, ocorre em três etapas:
1. Cálculo da razão de sexos na expectativa de vida
Para cada país, calcula-se a razão entre a expectativa de vida de mulheres e homens em diferentes idades (0, 5, 15, 35, 50 e 70 anos). Valores acima de 1 indicam maior expectativa de vida feminina; abaixo de 1, maior expectativa de vida masculina.
2. Definição de uma “fronteira” (benchmark) por sexo
Para estimar o que é atingível sob condições favoráveis, os autores selecionam, para cada sexo, os países situados no 5º percentil superior de expectativa de vida (ou seja, os melhores desempenhos mundiais) e usam esses valores como “fronteira” ou benchmark masculino e feminino. A partir daí, calculam a razão de sexos específica dessa fronteira.
Essa etapa incorpora duas hipóteses importantes:
- Hipótese de potencial comum: homens do mundo inteiro poderiam, teoricamente, alcançar a expectativa de vida dos homens dos países de fronteira; o mesmo vale para mulheres.
- A diferença média entre fronteiras masculina e feminina reflete, em parte, limites atuais dados pelo ambiente global de riscos e cuidados de saúde, mas não pode ser interpretada como diferença puramente biológica, pois ainda integra fatores sociais, econômicos e de sistema de saúde não controlados.
3. Cálculo da razão ajustada e identificação de desigualdade
Para cada país e idade, a razão simples de expectativa de vida entre sexos é dividida pela razão observada na fronteira. Esse quociente é a razão ajustada de sexo:
- Razão ajustada > 1 → indica desvantagem masculina (homens vivem menos que o esperado em relação à vantagem feminina observada na fronteira).
- Razão ajustada < 1 → indica desvantagem feminina.
Para evitar rotular como desigualdade diferenças muito pequenas e possivelmente irrelevantes, os autores definem ainda uma faixa estreita em torno de 1 (um “buffer”), dentro da qual não se afirma haver desvantagem clara para nenhum dos sexos.
Esse método é um tipo de análise de benchmarking: em vez de comparar homens e mulheres apenas dentro de cada país, compara-se também o desempenho relativo a países que atingiram os melhores resultados para cada sexo sob o contexto global atual.
Principais achados: de vantagem feminina bruta a desvantagens femininas “ocultas”
Antes do ajuste, os resultados são consistentes com a literatura:
- Em praticamente todos os países (exceto dois) e em todas as idades analisadas, os homens apresentam expectativa de vida inferior à das mulheres.
- Isso reflete o padrão global conhecido: maior mortalidade masculina, especialmente por causas evitáveis, e maior expectativa de vida feminina em quase todas as faixas etárias.[1][2][3]
Após o ajuste pela fronteira, o quadro torna‑se mais complexo e revelador:
- Entre 13% (na idade 0) e 33% (aos 70 anos) dos 237 países analisados passam a apresentar desvantagem feminina em expectativa de vida.
- Mais da metade dos países, porém, continuam apresentando desvantagem masculina, mesmo após o ajuste, o que indica que, globalmente, os homens seguem mais desfavorecidos em termos de expectativa de vida.
Alguns padrões regionais se destacam:
- Índia e cerca de metade dos países do Oriente Médio e Norte da África, Atlântico Norte, África Subsaariana e Pacífico Ocidental/Ásia Sudeste apresentam desvantagem feminina após o ajuste.
- O número de países com desvantagem feminina aumenta com a idade, em especial na África Subsaariana e no Pacífico Ocidental/Ásia Sudeste, sugerindo acúmulo de desvantagens ao longo da vida das mulheres.
- Europa Central e Oriental mostra forte desvantagem masculina em quase todas as idades, mesmo após o ajuste, o que dialoga com evidências de altas taxas de mortalidade masculina por doenças cardiovasculares, álcool, tabagismo e causas externas nessas regiões.[1][2]
Em síntese, o ajuste revela que:
- A “vantagem feminina” bruta em expectativa de vida não significa ausência de desvantagem feminina: em vários países e faixas etárias, as mulheres vivem menos do que poderiam viver, dadas as fronteiras de desempenho feminino.
- Ao mesmo tempo, grande parte dos países mantém desvantagem masculina persistente, reforçando que a maior mortalidade masculina não é explicada apenas por fatores biológicos, mas também por padrões de risco, trabalho, violência, acesso aos serviços e normas de gênero.[2][4]
Determinantes das desigualdades: biologia, comportamento, contexto social e políticas
O artigo de Chang et al. não se dedica a decompor causas específicas de morte, mas dialoga com extensa literatura que aponta múltiplos determinantes das diferenças e desigualdades por sexo:
- Fatores biológicos: cromossomos sexuais (duplo X nas fêmeas, X/Y nos machos), hormônios sexuais, diferenças no sistema imune e em processos de envelhecimento podem conferir à fêmea de mamíferos certa vantagem de sobrevivência.[3]
- Fatores comportamentais e sociais: maior prevalência de tabagismo, álcool, drogas, comportamento de risco e exposição ocupacional a perigos entre homens; menor adesão masculina a cuidados preventivos e busca por serviços de saúde; padrões de masculinidade associados a risco e negação da vulnerabilidade.[2][4]
- Determinantes estruturais de gênero: discriminação de meninas e mulheres em alguns contextos (nutrição, educação, acesso a cuidados), violência de gênero, desigualdade no trabalho reprodutivo e de cuidado, barreiras de acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva. Isso ajuda a explicar a desvantagem feminina em certos países, apesar da vantagem biológica potencial.
- Padrões epidemiológicos específicos: estudos brasileiros mostram que a remoção de mortes evitáveis por doenças cardiovasculares aumentaria a expectativa de vida em ambos os sexos, mas com ganho proporcionalmente maior para homens; já a eliminação de neoplasias evitáveis, como câncer de mama e colo do útero, traria grande benefício para mulheres em idades jovens.[2]
Combinando esses achados com o método de Chang et al., é possível interpretar a razão ajustada de sexo como um espelho das políticas e das normas de gênero em cada contexto: onde a mortalidade masculina evitável se mantém muito alta, reforça‑se a desvantagem masculina; onde as mulheres ficam aquém de seu “potencial” de expectativa de vida, sugerem‑se barreiras estruturais, culturais e institucionais contra sua saúde e longevidade.
Implicações para políticas de saúde e equidade de gênero
O conceito de “desigualdade evitável” é central em saúde pública e em debates sobre justiça social. Ao propor um método que distingue diferenças “esperadas” (dadas as fronteiras de desempenho) de desvantagens injustas, Chang et al. oferecem uma ferramenta útil para:
- Identificar países e idades com maior desvantagem masculina ou feminina, orientando intervenções focalizadas (por exemplo, prevenção de violência e acidentes entre homens jovens; ampliação do acesso a atenção obstétrica e prevenção de câncer ginecológico para mulheres).
- Monitorar desigualdades ao longo do tempo, verificando se as políticas de equidade de gênero em saúde reduzem as razões ajustadas extremas.
- Reforçar a agenda de saúde dos homens, muitas vezes negligenciada, destacando que, embora as mulheres vivam mais, os homens acumulam maior carga de mortes evitáveis por causas externas e doenças crônicas.[2][4]
- Incorporar uma perspectiva de gênero interseccional, pois as desigualdades por sexo interagem com pobreza, etnia, escolaridade e território, ampliando desvantagens específicas tanto para homens quanto para mulheres em diferentes grupos sociais.
Além disso, o estudo dialoga com o debate sobre direitos humanos e desenvolvimento: melhorar a expectativa de vida de mulheres e homens não é apenas uma meta de saúde, mas também um indicador da capacidade das sociedades de promover igualdade de gênero, proteção social e ambientes saudáveis.
Limitações do método e do conhecimento atual
Os próprios autores reconhecem que seu método tem limitações importantes:
- A escolha do 5º percentil superior como fronteira e a definição da faixa de “igualdade” em torno da razão 1 são decisões empíricas; outros critérios poderiam levar a pequenas variações na classificação de países.
- Os benchmarks por sexo não refletem diferenças puramente biológicas, pois os países de melhor desempenho também apresentam contextos socioeconômicos, sistemas de saúde e padrões culturais específicos, impossíveis de isolar completamente.
- Trata‑se de um estudo ecológico e observacional, sem capacidade de provar causalidade. As razões ajustadas sugerem desigualdades, mas não identificam diretamente os mecanismos (por exemplo, qual fração se deve a violência, qual à desnutrição, qual à falta de acesso a tratamento de doenças crônicas).
- A expectativa de vida é um indicador síntese de quantidade de anos, mas não de qualidade de vida. Estudos de expectativa de vida saudável mostram que mulheres podem viver mais anos com incapacidade ou doença, o que não aparece nesse tipo de análise.[4][6]
Do ponto de vista científico mais amplo, o conhecimento sobre diferenças de sexo em saúde ainda enfrenta desafios:
- Muitos estudos não diferenciam adequadamente sexo biológico e gênero (papéis sociais, identidades, normas), o que dificulta a interpretação dos achados.
- Há ainda escassez de dados de alta qualidade em diversos países de baixa e média renda, sobretudo em idades avançadas, o que pode afetar estimativas de expectativa de vida e razões de sexo.
- A pesquisa sobre mecanismos biológicos de longevidade diferenciada por sexo está em curso, incluindo genética, epigenética, inflamação crônica e interações entre hormônios e ambiente.[3]
Conclusão: da descrição da diferença à mensuração da desigualdade evitável
O artigo “From sex differences to sex inequalities in life expectancy: A cross-country observational benchmarking analysis” representa um avanço conceitual e metodológico ao tratar a diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres não apenas como dado descritivo, mas como possível expressão de desigualdade evitável. Ao introduzir a razão ajustada de sexo com base em fronteiras de desempenho, o estudo mostra que:
- A “vantagem” feminina na expectativa de vida não elimina a existência de desvantagens femininas marcantes em muitos países, especialmente em idades mais avançadas.
- A desvantagem masculina permanece predominante em nível global, reforçando a necessidade de políticas específicas para reduzir a mortalidade evitável entre homens.
Esses achados reforçam a importância de se pensar saúde e longevidade em uma perspectiva de equidade de gênero: não basta saber quem vive mais; é crucial entender quem vive menos do que poderia viver e por quê, para que políticas públicas possam atuar sobre as causas evitáveis dessas desigualdades.