Desigualdades de género na expectativa de vida: o que a nova ciência revela
De diferenças biológicas a desigualdades evitáveis
As mulheres vivem mais do que os homens em praticamente todos os países do mundo, mas isso não significa que estejam sempre em melhor estado de saúde. Estudos globais demonstram que, ao nascer, a expectativa de vida feminina supera a masculina em pelo menos 1,4 anos, podendo ultrapassar os 3 anos em várias regiões, como na América Latina e na Europa. Esta vantagem, no entanto, resulta de uma combinação de fatores biológicos, comportamentais e sociais, o que torna o debate sobre “quem é mais vulnerável” muito mais complexo do que uma simples comparação de anos de vida.
Pesquisas em mamíferos indicam que as fêmeas tendem a viver mais em cerca de 72% das espécies, e parte dessa diferença está relacionada com a genética sexual: ter dois cromossomos X, como nas mulheres, oferece uma maior proteção contra mutações prejudiciais e doenças, enquanto o cromossomo Y, presente nos homens, é mais vulnerável. Contudo, a genética explica apenas uma parte da história. Padrões de mortalidade relacionados com causas externas (como violência e acidentes), doenças circulatórias, cancro e acesso desigual à saúde contribuem significativamente para a diferença na expectativa de vida entre homens e mulheres.
Um novo indicador: do quanto se vive ao quanto se poderia viver
O estudo “Das diferenças sexuais às desigualdades na expectativa de vida” propõe um passo além da simples comparação entre homens e mulheres: em vez de olhar apenas para as diferenças em anos de vida, os autores analisam desigualdades evitáveis na expectativa de vida entre os sexos, ou seja, aquilo que não pode ser atribuído apenas à biologia, mas a contextos sociais, de risco e de cuidados em saúde.
Para tal, criam o conceito de “razão sexual ajustada” da expectativa de vida em diferentes idades (0, 5, 15, 35, 50 e 70 anos). Primeiro, calculam a razão entre a expectativa de vida de mulheres e homens em cada país. Em seguida, identificam o “frontier” – o conjunto de países no 5º percentil mais alto de expectativa de vida para cada sexo – e utilizam esses valores como referência de desempenho máximo sob condições favoráveis. A razão de cada país é então dividida pela razão desses países de fronteira, gerando a razão ajustada.
A lógica é clara: assumindo que, no cenário atual de riscos e de oferta de cuidados de saúde, toda mulher poderia viver até à expectativa de vida das mulheres nos países de melhor desempenho, e todo homem até à dos homens nesses mesmos países, qualquer diferença residual entre os sexos dentro de cada país passa a ser interpretada como desigualdade evitável, e não apenas como diferença “natural”.
Quando o “sexo mais vulnerável” depende da idade e do país
Antes do ajuste, o quadro conhecido repete-se: em praticamente todos os países e faixas etárias, os homens vivem menos do que as mulheres. Este padrão é consistente com dados globais da Organização Mundial da Saúde, que há anos mostram uma maior mortalidade masculina e uma menor expectativa de vida em quase todos os contextos. Contudo, ao aplicar o método da razão sexual ajustada, o mapa muda de forma significativa:
Entre 13% (aos 0 anos) e 33% (aos 70 anos) dos 237 países analisados deixam de ser considerados como de desvantagem masculina e passam a exibir desvantagem feminina na expectativa de vida, quando comparados ao desempenho máximo possível para cada sexo. Em outras palavras, à medida que se ajusta para o que homens e mulheres poderiam alcançar em condições ótimas de saúde, uma parte relevante dos países revela que as mulheres estão a viver menos do que poderiam – e, portanto, em situação de inequidade de género em saúde.
Mesmo após este ajuste rigoroso, mais da metade dos países continua a apresentar desvantagem masculina, o que reforça que, em escala global, os homens continuam a ser mais vulneráveis à mortalidade precoce, tanto por causas externas (acidentes, violência, homicídios, suicídios) quanto por doenças crónicas evitáveis (doenças cardiovasculares, neoplasias relacionadas com o tabaco e o álcool). Estudos realizados no Brasil, por exemplo, mostram que, se fossem eliminadas as mortes evitáveis por causas externas, os homens ganhariam cerca de 1,95 anos extra de vida ao nascer, contra 0,54 anos para as mulheres. Isso aponta para um potencial de ganho muito maior na saúde masculina em cenários de prevenção efetiva.
Desigualdades regionais: onde as mulheres ficam para trás
O estudo revela um padrão regional marcante: a Índia e aproximadamente metade dos países do Oriente Médio e Norte de África, Atlântico Norte, África Subsaariana e Pacífico Ocidental/Sudeste Asiático apresentam desvantagem feminina após ajuste. Nesses contextos, fatores como discriminação de género, menor acesso a serviços de saúde, barreiras educacionais e económicas para as mulheres, casamentos e gestações precoces e violência de género podem reduzir de forma significativa o potencial de vida feminina, mesmo quando, biologicamente, elas teriam vantagem de sobrevivência.
Outro achado importante é que o número de países com desvantagem feminina aumenta com a idade, sobretudo na África Subsaariana e em países do Pacífico Ocidental e Sudeste Asiático. Isso sugere que, em muitas regiões, as mulheres acumulam desvantagens ao longo do curso da vida – como cuidados de saúde insuficientes na meia-idade, menor acesso a diagnóstico e tratamento de cancro, doenças cardiovasculares e doenças crónicas – o que se reflete em maior perda de anos de vida nas idades mais avançadas.
Em contraste, a Europa Central e Oriental mantém uma forte desvantagem masculina em praticamente todas as idades, mesmo após o ajuste. Esta região é conhecida por altas taxas de mortalidade masculina por causas evitáveis, incluindo consumo abusivo de álcool, tabagismo, doenças cardiovasculares e acidentes, o que amplifica a lacuna de expectativa de vida em relação às mulheres, apesar de ambos os sexos viverem em contextos de melhor acesso à saúde do que em países de baixa renda.
Fronteiras, escolhas metodológicas e limites científicos
Os autores reconhecem que a seleção dos países de “fronteira” (5% com maior expectativa de vida por sexo) e a definição de uma faixa “neutra” em torno da razão de 1 (onde nenhuma desvantagem é atribuída) são escolhas empíricas, e outros cortes poderiam ser adotados. Ainda assim, o método oferece um avanço importante: ele distingue o que é diferença de sexo (em parte biológica, como a vantagem conferida pelo cromossomo X duplo) daquilo que é desigualdade de género, ou seja, a parcela da diferença que resulta de contextos sociais, culturais, económicos e de políticas de saúde.
É também fundamental destacar que as “fronteiras” de expectativa de vida não representam um limite biológico absoluto, mas o melhor desempenho observado hoje em alguns países, em determinado contexto de riscos e tecnologias de saúde. Novos avanços em prevenção, diagnóstico precoce, terapias personalizadas e redução de desigualdades sociais podem, no futuro, ampliar ainda mais o teto possível de expectativa de vida para ambos os sexos.
Além disso, os próprios autores lembram que as diferenças observadas entre homens e mulheres nunca são puramente biológicas. Elementos como normas de género (que podem incentivar comportamentos de risco em homens, como maior consumo de álcool, tabaco e menor procura por serviços de saúde), sobrecarga de trabalho reprodutivo e de cuidados, e a forma como as mulheres são tratadas em contextos de saúde, são fatores que também influenciam a expectativa de vida e a saúde geral de cada sexo.