Associação entre desenho do implante, idade, sexo e taxa de reoperação maior após artroplastia total primária do quadril: análise de dados do National Joint Registry do Reino Unido
Introdução
A artroplastia total do quadril (ATQ) é um dos procedimentos ortopédicos mais bem-sucedidos, com alto índice de alívio da dor e melhora funcional em milhões de pacientes em todo o mundo.[2][5] Tradicionalmente, o principal desfecho utilizado para avaliar o desempenho de implantes e serviços de saúde é a revisão de prótese, ou seja, a cirurgia em que um ou mais componentes do implante são trocados.[1][6]
Entretanto, focar apenas em revisões subestima o verdadeiro fardo de falhas de tratamento, pois ignora reoperações maiores sem troca de implante, como as cirurgias para tratar fraturas periprotéticas femorais pós-operatórias (postoperative periprosthetic femoral fractures, POPFF) em que o implante é mantido.[6] Essas reoperações também se associam a aumento de morbidade, mortalidade, tempo de internamento e custos para o sistema de saúde, impactando diretamente a experiência do paciente.
Um estudo retrospectivo em larga escala, utilizando dados vinculados do UK National Joint Registry (NJR) e do Hospital Episode Statistics (HES), buscou quantificar a incidência de reoperação maior após ATQ primária, e analisar como desenho do implante, idade e sexo se relacionam com a taxa de reoperação. Esse tipo de análise é particularmente relevante, pois o NJR é o maior registro ortopédico do mundo, com milhões de procedimentos registrados e seguimento de até 15 anos.[1][2][5]
Objetivos do estudo
O objetivo principal foi estimar a incidência de reoperação maior após artroplastia total primária do quadril, utilizando um conceito ampliado de falha do tratamento que inclui:
– Revisão de prótese por qualquer causa
– Fixação cirúrgica de fratura periprotética femoral pós-operatória (POPFF) com manutenção do implante
Objetivos secundários incluíram:
– Comparar a incidência baseada apenas em revisão com a incidência baseada em “reoperação maior” (revisão + POPFF tratada cirurgicamente)
– Avaliar diferenças nas curvas de reoperação maior em função de idade e sexo
– Investigar a associação entre tipo/desenho do implante femoral (por exemplo, cimentado vs. não cimentado, colarado vs. sem colar, geometria do haste, material) e o risco de reoperação maior em subgrupos etários e de sexo
Métodos
Desenho do estudo e fonte de dados
Trata-se de um estudo de coorte retrospectivo (nível de evidência III) baseado em dados de rotina de dois grandes sistemas:
– National Joint Registry (NJR): registro nacional que coleta dados de todas as ATQs realizadas na Inglaterra, País de Gales, Irlanda do Norte, Ilha de Man e Guernsey, incluindo detalhes de paciente, cirurgião, hospital e implante.[2][5][9]
– Hospital Episode Statistics (HES): base administrativa que contém informações de internações hospitalares, diagnósticos (códigos ICD) e procedimentos (códigos OPCS) no NHS inglês.
A vinculação dos bancos permitiu identificar não apenas revisões registradas formalmente no NJR, mas também intervenções relevantes registradas como episódios hospitalares, mas que tradicionalmente não entravam como “revisão” no registro.[1][5]
Critérios de inclusão e período
Foram incluídas todas as ATQs primárias:
– Realizadas entre 01/01/2010 e 31/12/2020
– Com implantes “recentemente disponíveis” e com as mais altas classificações de segurança (de acordo com a regulamentação e avaliações de desempenho de implantes no NJR)[6][8]
– Totalmente passíveis de vinculação entre NJR e HES
Foram excluídos procedimentos com dados incompletos de vinculação, implantes com baixo nível de evidência de segurança ou descontinuados precocemente por mau desempenho, e casos não claramente identificáveis como ATQ primária.
Definição de desfecho: reoperação maior
O desfecho principal foi a primeira reoperação maior, definida como:
– Qualquer revisão de prótese (troca parcial ou total dos componentes) registrada no NJR, por qualquer causa
– OU fixação cirúrgica de fratura periprotética femoral pós-operatória (POPFF) com manutenção do implante, identificada através de combinação de códigos de procedimento e diagnóstico nos dados HES
Assim, cirurgias como osteossíntese com placa ou hastes para fratura periprotética, sem necessidade de troca da haste femoral ou do componente acetabular, foram corretamente classificadas como falha de tratamento, algo que não aparece nas estatísticas de revisão tradicionais.
Análise estatística
– O tempo de seguimento foi calculado desde a data da ATQ primária até o primeiro evento de reoperação maior, óbito ou fim do período de observação.
– Foram estimadas taxas de incidência por 1.000 anos de prótese e incidência cumulativa em 10 anos utilizando métodos de sobrevivência.
– As análises foram estratificadas por idade, sexo e tipo de haste femoral (cimentada, não cimentada, colarada, polida cônica, material do implante) com ajuste parcial para potenciais confundidores (por exemplo, comorbidades, ano de cirurgia, indicação primária).
– Os autores reconhecem que diferenças residuais no perfil dos pacientes (casemix) podem não ter sido completamente ajustadas, o que limita interpretações causais fortes.
Resultados principais
Amostra e tempo de seguimento
Foram incluídas 372.967 ATQs primárias, correspondendo a 2.127.464 anos de prótese em risco. O tempo mediano de seguimento foi de 5,39 anos, variando de 0 a 12,1 anos.
No total, foram identificadas 8.043 reoperações maiores, incluindo tanto revisões de prótese quanto fixações de POPFF.
Incidência de reoperação maior vs. revisão convencional
– A incidência de reoperação maior foi de 3,78 por 1.000 anos de prótese (IC 95%: 3,70–3,86).
– Quando se considerou apenas revisão convencional, a incidência foi de 3,00 por 1.000 anos de prótese (IC 95%: 2,93–3,07).
Isso indica que o uso exclusivo da revisão como desfecho subestima a falha global do tratamento. Em termos relativos, a inclusão das POPFF tratadas cirurgicamente revela um aumento considerável no total de eventos considerados clinicamente relevantes para o paciente.
A incidência cumulativa de reoperação maior em 10 anos foi de 3,1% (IC 95%: 3,0–3,1%). Embora esse valor pareça relativamente baixo, seu impacto em uma população crescente de pacientes idosos, com milhões de próteses implantadas, é significativo em termos de saúde pública.[1][5]
Influência da idade e do sexo
Os autores estratificaram as estimativas de reoperação maior por faixa etária e sexo, observando diferenças relevantes:
– Pacientes mais idosos apresentaram maior risco de reoperação maior, em linha com maior fragilidade óssea, osteoporose e risco de queda, fatores fortemente associados a fratura periprotética.
– Houve diferenças claras entre homens e mulheres em faixas etárias mais avançadas, tanto em magnitude de risco quanto no desempenho relativo de tipos de implante.
Desenho do implante e risco de reoperação maior
Desempenho em homens idosos
Entre homens com 68 anos ou mais, os hastes femorais não cimentadas com colar apresentaram menor taxa de reoperação maior em comparação às hastes cimentadas.
Possíveis explicações biomecânicas (ainda que não diretamente testadas neste estudo) incluem:
– O colar pode melhorar a distribuição de carga na metáfise femoral, reduzir o micromovimento e proporcionar maior estabilidade primária.
– Em pacientes com melhor qualidade óssea e maior massa óssea cortical (perfil mais comum em homens mais idosos que permanecem funcionalmente ativos), hastes não cimentadas colaradas podem integrar-se com maior previsibilidade.
– A redução de microfissuras adjacentes e sobrecarga localizada pode diminuir o risco de fratura periprotética.
Desempenho em mulheres idosas
Entre mulheres com 75 anos ou mais, o padrão observado foi o oposto: hastes cimentadas polidas cônicas de aço inoxidável mostraram as menores taxas de reoperação maior.
Este achado é coerente com a prática ortopédica tradicional em muitos países europeus, onde o cimento ósseo é preconizado em idosos, sobretudo mulheres com osteoporose, devido a:
– Melhor preenchimento do canal femoral e distribuição homogênea de cargas.
– Redução do risco de fratura intraoperatória e pós-operatória em ossos fragilizados.
– Comportamento previsível de hastes polidas cônicas “taper slip” cimentadas, que se adaptam sob carga ao manto de cimento, desde que este seja adequado.
Assim, o estudo sugere que a combinação ideal de implante deve ser individualizada com base em idade, sexo e provavelmente em qualidade óssea, embora a última não tenha sido diretamente mensurada nos dados administrativos.
Implicações para políticas de implante e prática clínica
Os resultados reforçam que:
– A falha de tratamento após ATQ está subestimada quando se usa apenas revisão como desfecho, o que pode distorcer avaliações de desempenho de implantes e cirurgiões.[1][5][6]
– Diretrizes nacionais de escolha de implantes para pacientes idosos podem precisar ser revistas para incorporar não apenas taxas de revisão, mas também taxas de fratura periprotética e demais reoperações maiores.
Especificamente:
– Em homens ≥ 68 anos, os achados favorecem o uso de hastes não cimentadas colaradas em termos de menor taxa de reoperação maior.
– Em mulheres ≥ 75 anos, os dados sustentam o uso de hastes cimentadas polidas cônicas em aço inoxidável como estratégia mais segura quanto a reoperação maior.
Essas informações são relevantes para órgãos como NHS England, NICE e comissões locais de próteses, que utilizam dados do NJR para recomendações e alertas sobre desempenho de implantes.[1][2][5][8]
Limitações do estudo
Apesar da força metodológica conferida pelo grande tamanho amostral e pelo caráter nacional dos dados, várias limitações precisam ser explicitadas:
– Desenho retrospectivo observacional: não permite estabelecer causalidade, apenas associações.
– Confusão residual: mesmo com ajuste para idade, sexo, ano de cirurgia e algumas comorbidades, podem persistir diferenças não mensuradas entre grupos, como densidade mineral óssea, nível de atividade, fragilidade, técnica cirúrgica e experiência do cirurgião.[3][5]
– Classificação de eventos dependente de códigos: a identificação de POPFF e de fixações de fratura depende da precisão dos códigos de diagnóstico e procedimento; erros de codificação podem levar a sub ou superestimação de eventos.
– Foco em reoperações cirúrgicas: complicações clínicas importantes (dor persistente, instabilidade não tratada cirurgicamente, infecção precoce controlada por antibiótico e desbridamento sem registro como revisão formal) podem não ter sido capturadas.
– Generalização: os resultados refletem o contexto do NHS do Reino Unido, padrões de prática, modelos de implantes e populações específicas; a extrapolação para outros países deve ser feita com cautela.
Relevância para a medicina baseada em evidências e para abordagens integrativas
Do ponto de vista estritamente biomédico, o estudo reforça a necessidade de:
– Utilizar desfechos abrangentes (revisão + reoperação maior) para avaliação honesta do desempenho de implantes.
– Individualizar a escolha do implante em função de biologia do paciente (idade, sexo, qualidade óssea) e não apenas por preferência do cirurgião ou custo imediato.
– Monitorizar continuamente o desempenho de implantes através de registros nacionais de alta qualidade, como o NJR, considerados referência internacional na vigilância pós-comercialização de dispositivos médicos.[2][5][8]
Em contextos de medicina integrativa e de cuidados centrados no paciente, essa visão ampliada da “falha de tratamento” é essencial para:
– Discutir de forma transparente com o paciente não apenas o risco de “trocar a prótese”, mas também o risco de fraturas e cirurgias adicionais ao redor do implante.
– Planejar intervenções preventivas (por exemplo, otimização de saúde óssea, redução de risco de queda, fortalecimento muscular, correção de déficits nutricionais) para minimizar o risco de POPFF em pacientes de maior risco, especialmente mulheres idosas com osteoporose.
Conclusões
A adoção exclusiva da revisão de prótese como marcador de falha em artroplastia total do quadril subestima o verdadeiro impacto de complicações cirúrgicas de grande porte. Ao incluir reoperações maiores sem troca de implante, como a fixação de fraturas periprotéticas femorais, observa-se aumento significativo das taxas de falha e um retrato mais fidedigno da trajetória do paciente após ATQ.
Os achados deste grande estudo retrospectivo indicam que:
– A taxa de reoperação maior é superior à taxa de revisão isolada (3,78 vs. 3,00 por 1.000 anos de prótese).
– A incidência cumulativa de reoperação maior em 10 anos é de aproximadamente 3,1%.
– O desenho do implante femoral interage com idade e sexo: em homens mais velhos, hastes não cimentadas colaradas tiveram melhor desempenho; em mulheres mais idosas, hastes cimentadas polidas cônicas de aço inoxidável foram associadas a menor risco de reoperação maior.
Esses resultados apoiam uma revisão das diretrizes de seleção de implantes para pacientes idosos, reforçam a importância do uso de grandes registros nacionais como o NJR para vigilância de dispositivos médicos, e sublinham a necessidade de uma abordagem centrada no paciente, que considere não só o risco de revisão, mas todo o espectro de intervenções cirúrgicas maiores ao longo da vida da prótese.